Observação: a crítica deste texto é em relação às últimas produções audiovisuais de Saint Seiya feitas pela Toei.
Passado o filme live action, cujo resultado nas bilheterias foi um desastre, acho que é preciso repensar em como tornar a franquia de Saint Seiya mais atraente. Eu, como fã apaixonada de Saint Seiya, tenho me cansado da velha fórmula de anime de luta, típico de shounen. Existem dois títulos recentes que me chamaram a atenção. São dois animes que se tornaram muito queridos para mim e que podem nos servir de base para refletirmos sobre o que eu quero de Saint Seiya. Esses animes são: Sousou no Frieren (葬送のフリーレン) e Ousama Ranking (王様ランキング). Hoje vou falar somente do primeiro.
Sousou no Frieren é o anime que mais chamou a minha atenção nos últimos tempos. Nunca cheguei a ler o mangá, e, quando vi o anime, pensei que se tratasse de uma obra da categoria “seinen”. Fiquei surpresa quando vi que era classificado como “shounen”. Ainda que os arcos envolvendo luta de fato sejam típicos da categoria “shounen”, o que chama a atenção nesse anime é a qualidade da narrativa e a maturidade da história. Sousou no Frieren possui algumas características que eu quero ver em Saint Seiya. Lembro que esta lista não está em ordem de importância. Todas são características igualmente importantes e interdependentes.
1) Reflexão madura sobre vida, morte e dor da perda
Sousou no Frieren é uma história que não esconde qual é o seu propósito desde o início. Trata-se de uma jornada de descoberta e de autodescoberta de Frieren, a protagonista. Frieren, por ter a capacidade de viver por milhares de anos, tem uma noção diferenciada da passagem do tempo, o que a leva a refletir sobre o tempo dos humanos. Refletimos sobre como devemos aproveitar o tempo de vida com aqueles que amamos, sobre a aceitação da morte dessas pessoas, sobre as memórias que levamos delas. Essa é uma reflexão que todos nós fazemos – sobretudo nós, adultos. Eu sou uma fã de Saint Seiya que tem mais de quarenta anos. Meus pais são bem idosos e precisam de minha ajuda para muitas coisas. Eu vivo de perto as dificuldades da velhice e tenho um contato muito próximo com a questão da morte, que inevitavelmente chegará para pessoas que eu amo e que estão no final da vida. Eu quero reflexões sobre a finitude da vida nas obras que eu vejo, e Sousou no Frieren trata disso com muita qualidade.
É muito pertinente esse tipo de reflexão, não só para o povo japonês, que possui uma população significativa de idosos, mas também para nós, fãs, que estamos em um momento da vida em que muitos convivem com pais idosos. É legal ver jovens entusiasmados com as aventuras que viverão, mas as narrativas que me atraem mais são aquelas em que esses personagens são mais sensíveis ao peso da morte e ao luto. E, para sensibilizar o público com esse tema, é muito importante dar atenção ao modo como esse assunto é tratado: é necessária uma narrativa que dê tempo para o espectador contemplar o momento, sem pressa, com diálogos muito bem escritos.
Um dos episódios de Sousou no Frieren que me marcou foi o 4º. O final dele apresenta um diálogo aparentemente simples, mas muito bem construído. Eisen pede desculpas a Fern, pois a jornada que ele propõe a Frieren tomará 10 anos de sua vida. Fern, uma adolescente que não quer perder muito tempo no mesmo lugar em sua jornada com Frieren, pensa muito mais no seu objetivo do que no caminho. Dez anos para ela, que é humana, é muito tempo. Temos aqui a ideia de que esses 10 anos são anos perdidos, jogados fora. Frieren, ouvindo a conversa entre Eisen e Fern, diz: “Você tem razão. Será uma aventura de apenas 10 anos”. Aqui, podemos pensar em dois sentidos para a fala de Frieren. O primeiro sentido é que Frieren, por viver centenas de anos, sente que 10 anos é muito pouco tempo. Ela comenta o mesmo ao final de sua aventura com Himmel. Contudo, o segundo sentido é o que torna esse diálogo mais bonito e significativo ao público. Frieren já passou pela morte de Himmel e já entende que os dez anos de aventura que viveu com seus amigos são extremamente importantes. Esse comentário de que a aventura leva “apenas” dez anos não é a mesma coisa de antes. Aqui, é como se ela falasse: “serão apenas 10 anos, por isso vamos aproveitar esse tempo ao máximo”. Em outras palavras, para ela, não serão 10 anos jogados fora, mas 10 anos muito significativos, dos quais ela e os outros personagens sentirão falta. Reparem que não é necessário a Frieren dizer que esse tempo deve ser aproveitado. Cabe ao público entender isso. Muitas vezes, o bonito é aquilo que não é dito, mas está implícito. É preciso contar também com a inteligência e a maturidade do público. Dessa forma, temos um diálogo simples, mas com um significado muito forte. Isso é resultado de uma escrita de qualidade e que leva em consideração a maturidade de seu público.
Reflexões sobre a vida e a morte não são incomuns em produções para crianças, tanto que temos muitas animações voltadas ao público infantil sobre esses temas. Todas as produções que eu vi quando criança e que ficaram na minha memória afetiva possuíam forte relação com esses temas. Até hoje lembro de The Land Before Time, animação de 1988, que conta a história de Littefoot, um dinossauro que se torna órfão e precisa realizar uma jornada logo depois de perder a mãe. Muitos da minha geração também lembram da morte de Mufasa, de Lion King, da Disney, fato que marca a vida de Simba. Contudo, esses temas também são caros para adultos, ou seja, são temas universais. Esse é o caminho para ampliar o público-alvo de um produto inicialmente para meninos japoneses. Temas universais não se limitam a idade, gênero ou nacionalidade.
Contudo, é fundamental comentar que não basta matar um personagem para tornar a narrativa memorável: é preciso construir a morte desse personagem de forma significativa dentro da narrativa. Littlefoot ainda está no processo de luto da morte da mãe, e essa dor é evidente pela folha que ele carrega de lembrança de sua mãe. O momento da morte dos personagens não é rápido. É lento, porque o público também fica em luto, e pessoas em luto precisam de tempo. Hoje, em tempos de consumo rápido, quando pessoas assistem a vídeos em velocidade acelerada ou veem conteúdos rápidos, é importante lembrarmos que a tristeza e o luto não acontecem em poucos minutos e nem podem ser acelerados. Assim, a construção dessas cenas exige tempo e sensibilidade. Além disso, momentos marcantes assim geram reflexão nos personagens. A morte de Himmel é importante para Frieren não só porque ela o ama, mas porque essa morte gerou uma reflexão nela. Frieren passou a ver a vida de forma diferente depois da morte de Himmel. Os personagens precisam se desenvolver a partir desses momentos marcantes, e os produtores precisam ter em mente que o objetivo de tocar em assuntos sensíveis é mexer com os sentimentos de quem assiste ao anime. Consequentemente é preciso considerar que esse público é adulto e que tem capacidade e maturidade para enxergar e avaliar a estruturação dessas narrativas. É preciso que esses temas sejam tratados com profundidade necessária para agradar um adulto.
2) Construção estética da narrativa
Momentos significativos são construídos na narrativa não só com temas fortes, mas também pela maneira como eles são estruturados. E aqui estou falando de arte narrativa. Sabemos que animes são produtos, e produtos precisam gerar dinheiro. Contudo, não podemos nos esquecer da dimensão artística da construção da narrativa. A arte é poderosa e impacta muito mais do que a mensagem direta. A arte precisa ser interpretada, e a audiência precisa ser inteligente o bastante para interpretá-la. Acredito que é disso que a audiência de Saint Seiya precisa.
Podemos pensar, por exemplo, na estruturação do tempo em Sousou no Frieren. Toda a história de autodescoberta de Frieren acontece apenas a partir da morte de Himmel. É comum no mundo cristão a divisão do tempo pelo sistema Anno Domini (BC e AD). Da mesma forma, toda a contagem de tempo da narrativa de Sousou no Frieren acontece a partir da morte de Himmel. O tempo é um elemento central de Sousou no Frieren e faz parte da mensagem do anime. Por isso, faz sentido que o tempo passe a ser contado a partir da morte de Himmel, ou seja, a partir do momento em que Frieren desperta para a valorização do tempo dos humanos em sua vida. É muito interessante como essa tomada de consciência da Frieren é refletida pelos saltos de tempo, cada vez menores. A escolha de estruturar o tempo da narrativa é gerada pela intenção do autor e é uma escolha artística, que destaca a importância dos eventos e do tempo em Sousou no Frieren.
A própria passagem do tempo no anime de Frieren é influenciada pela intenção do autor. O que nos interessa na jornada de Frieren não é o seu objetivo de ir até Ende, e sim a própria jornada. Eventos comuns, típicos dos animes da categoria “slice of life”, são parte do objetivo da narrativa, inclusive a comemoração dos aniversários, em nada relacionados às lutas que o grupo enfrenta no caminho. O que nos interessa é a reflexão que esses acontecimentos geram no público, que tornam a história desses personagens mais significativa. Eles são importantes, por isso devem ser contados sem pressa. O público precisa ter tempo para apreciar também esses pequenos momentos. Um ponto positivo desse tipo de narrativa em animes é, também, a economia de animação em comparação com a necessidade de dinamismo das cenas de luta. É importante observar aqui que eu não me refiro a eventos para “matar o tempo”, e sim a eventos relevantes na construção da história e dos personagens, que podem ser muito simples, mas comoventes e significativos.
Outro exemplo de como a arte na narrativa é importante na construção de significados da história é no comovente episódio em que Frieren conversa com Voll, um anão idoso que mostra sinais de senilidade. Embora ele não se lembre mais da esposa, permanece como protetor da vila dela. A mensagem que esse personagem traz é poderosa: é possível perder memórias importantes. Por mais que pensemos “essa pessoa é importante e eu nunca vou esquecê-la”, o tempo consegue apagar as memórias envolvendo essa pessoa, ainda mais quando se trata de idosos acometidos por doenças como demência. Nesse momento da narrativa, vemos um recurso narrativo conhecido como duplo ou espelho. Ele foi empregado de forma bem clichê no filme live-action de Saint Seiya, em que o personagem Seiya encontra seu duplo, mas criança. Aqui, em Sousou no Frieren, o espelho é muito bem empregado numa cena em que a identidade de Frieren é simbolicamente duplicada e refletida na figura de Voll. Frieren confronta Voll, afirmando que é óbvio que se lembra de Himmel, enquanto que Voll, por ser idoso, já não se lembra de sua esposa. O significado desse confronto é bem retratado visualmente, como na imagem a seguir:
Nessa imagem, vemos que Frieren encontra-se num lugar mais alto do que Voll. À medida que nós envelhecemos, vamos nos aproximando da morte. Nós vamos declinando. Isso está presente nessa imagem. Voll está na parte mais baixa porque ele está mais próximo da morte do que Frieren, mas um dia Frieren também estará na mesma posição que ele. Dessa forma, a história nos sugere que mesmo Frieren pode acabar esquecendo as características de Himmel um dia, por mais importante que ele seja para ela. Eu tenho pessoas na família nessa situação, e essa é uma realidade extremamente dolorosa. Essa cena do anime me sensibilizou bastante. Portanto, aqui temos um exemplo de mensagem forte que é construída de forma artística, por meio do recurso do espelho e do declive que representa o fim da vida.
O recurso do duplo é frequentemente empregado em animes e mangás. Contudo, quando esse duplo ocorre entre um personagem e uma imagem dele mesmo (como Seiya adulto e Seiya jovem no filme live-action) ou entre um personagem e alguém importante para ele (como Sísifo de Sagitário e Sasha, no Lost Canvas), torna-se óbvio e chato, por ter sido utilizado em excesso em muitas outras produções.
Eu gostaria que a produção de Saint Seiya tivesse maior cuidado artístico com a forma como a narrativa é estruturada. Quando penso em Saint Seiya, além dos momentos dramáticos dos personagens, também me vêm à mente alguns momentos significativos.
Um bom exemplo de construção artística em Saint Seiya que eu gosto de mencionar é no mangá de The Lost Canvas. Um dos quadros mais importantes desse mangá é o que apresenta todos os cavaleiros de ouro dentro do salão do Grande Mestre, com exceção de Shion, que chega atrasado à reunião. No fundo do salão, sentado em um trono, está o Grande Mestre Sage. Esse é um quadro importante, pois é aquele que apresenta oficialmente os cavaleiros de ouro ao leitor. Posteriormente, na série Gaiden, vemos um quadro parecido na história de Shion, uma visão com os cavaleiros de ouro no salão do Grande Mestre. Contudo, nessa imagem, o trono está vazio. O leitor entende que os cavaleiros de ouro estão respeitosamente dando passagem para Shion ocupar o cargo de Grande Mestre. Shion não ocupou o cargo de Grande Mestre por mérito. Ele só sobreviveu junto com Dohko, ou seja, só restou ele para ser Grande Mestre. Ele nunca recebeu a aprovação dos colegas cavaleiros de ouro para ocupar aquela posição e nem tem certeza se seria aprovado. O fato de Shion ver seus colegas dando passagem para ele ser o Grande Mestre é um sinal de aprovação e de grande honra, causando um efeito catártico no leitor. Nota-se que a única diferença entre o primeiro e o segundo quadro é a ausência do Grande Mestre no segundo. Uma pequena alteração da imagem trouxe um significado completamente diferente para uma imagem já conhecida do leitor. Isso é uma transformação estética. Na poesia e na literatura, somos surpreendidos quando uma palavra ou elemento ganha um novo significado, e esse significado torna a nossa leitura mais rica. Isso é arte. Da mesma forma, a autora de Lost Canvas produziu arte nesses dois quadros ao dar um novo significado a uma ilustração. Quando eu vi essa ilustração pela primeira vez, fiquei muito emocionada e chorei. Isso só foi possível porque a construção desse quadro não era apenas emocional, mas também artística. Eu quero que Saint Seiya, nos animes, tenha arte desse nível.
Evidentemente, é preciso levar em conta que nem sempre a intenção artística é percebida conscientemente pela audiência. Contudo, muitas vezes, a audiência é capaz de captar a beleza, mesmo que não consiga descrevê-la racionalmente. E depois, quando esse público conseguir perceber como a arte é construída em determinada cena, sentirá um enorme prazer e dará mais valor à obra.
3) Tempo para contemplação
Como eu já mencionei neste texto, a forma como a narrativa é narrada não pode ser acelerada. É claro que as histórias de Saint Seiya envolvem lutas, e as cenas de ação são, logicamente, rápidas. Contudo, momentos em que os personagens são desenvolvidos por meio de diálogos e de momentos fora do campo de batalha não podem ser acelerados. Creio que o medo de o público ficar entediado por falta de lutas seja uma preocupação dos produtores. Mas, para mim, a luta só é interessante quando há um subplot interessante por trás do conflito.
Uma das características de Saint Seiya são as lutas em que personagens resolvem assuntos pendentes, como quando Shun enfrenta Afrodite para vingar a morte de seu mestre e para provar seu valor como homem. Em meio à luta, todo o flashback sobre o treino de Shun na ilha de Andrômeda foi exibido, com a intenção de mostrar à audiência o quão importante o mestre foi para Shun. As lutas de Saint Seiya duravam dois episódios ou mais por causa de subplots assim, que davam significado à luta, deixando-a emocionante. Em resumo: a ação empolga, e o contexto emociona. Empolgar-se com luta não é tão memorável quanto emocionar-se com ela. Eu quero que Saint Seiya tenha lutas mais emocionantes.
Para que essa emoção seja construída na narrativa, é importante não acelerar a história. É preferível uma história bem contada sobre três cavaleiros de ouro do que uma história acelerada com todos os 12, como foi em Soul of Gold. Embora a intenção desse anime tenha sido lançar os bonecos com as armaduras divinas, um cuidado maior com a animação e o roteiro teria sido bem-vindo aos fãs, junto com uma história contada sem pressa. Eu, pelo menos, não criei nenhum vínculo com a história e nem fiquei com vontade de comprar os bonecos por não ter esse vínculo afetivo.
No mundo atual, somos muito acelerados. Os jovens de hoje em dia têm o costume de assistir a vídeos com o dobro de velocidade. Contudo, eu não conheço ninguém da nova geração que leva metade do tempo para recuperar-se da tristeza ou do luto em relação à geração anterior. O tempo que levamos para processar emoções fortes não é diferente. Dessa forma, cenas emotivas em Saint Seiya não deveriam ser retratadas com pressa, nem mesmo a construção dos sentimentos dos personagens. Além disso, Sousou no Frieren é uma prova de que o público não quer histórias aceleradas, mas lentas e contemplativas. Eu sinto muito a falta disso em Saint Seiya.
Conclusão
É claro que há mais coisas que eu gostaria de ver em Saint Seiya, mas destaquei esses três elementos que são fundamentais para a qualidade do roteiro de um anime marcante. É certo elaborar o anime em função dos produtos a serem vendidos. Contudo, a franquia de Saint Seiya se enfraqueceu ao longo dos anos principalmente porque suas últimas produções carecem dos elementos listados aqui. E Sousou no Frieren é a prova de que esses elementos são importantes para o sucesso do produto em questão. É impossível termos um produto forte de Saint Seiya se ele não puder concorrer com títulos fortes como Sousou no Frieren e outros animes que conseguem trabalhar com eficiência a história e os sentimentos dos personagens de modo a sensibilizar o espectador e o fã. É preciso lembrar que esses fãs, assim como eu, são adultos. Nós temos maior capacidade de analisar estruturas narrativas e por isso precisamos de narrativas com melhor qualidade artística, sem se esquecer da emoção.
Embora seja óbvio, afirmo: a opinião positiva dos fãs sobre a história do anime, em conjunto com suas qualidades técnicas, é fundamental para o sucesso de uma franquia. Sousou no Frieren, em pouco tempo, ocupou o #1 no AnimeList, popular site sobre animes. A boa opinião de alguns influenciadores faz com que outros formadores de opinião elogiem o produto. A recomendação boca a boca entre os fãs e o público geral faz com que pessoas fiquem curiosas com esse produto – incluindo norteamericanos! É impossível a franquia de Saint Seiya voltar a fazer sucesso sem passar por esse processo de boa opinião pública, incluindo a dos fãs.

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